Não há vozes. Há olhares.

As sequelas de qualquer violência não podem ser vistas sem empatia e o que mais há em nosso meio é justamente a falta dela.

Além das sessões continuas de meditação que faço para a prática do autoconhecimento, existe um momento importante do dia que me faz pensar na vida. Este momento é quando tomo chimarrão sozinha. É uma benção sentir-se bem sendo a própria companhia.

Começo a refletir que permaneci por mais de quinze anos em silêncio após um abuso sexual na infância. Hoje me senti pronta para quebrar o silêncio e o fiz. Apesar das poucas aparições em público, as que fiz me chamaram a atenção. Através de minha sensibilidade aguçada pude perceber cada olhar que me fitava de maneira curiosa. Houve quem me olhasse como que procurando uma ferida aberta em meu próprio corpo ou procurando uma mancha de sangue. Não há vozes. Há olhares. Me senti estranha. Está sendo tudo tão intenso que esqueci quem eu era antes dessa revelação acontecer e as pessoas obviamente mudaram totalmente suas opiniões ao meu respeito.

Fecho os olhos, respiro fundo e ouço o que as pessoas não dizem. Onde foi que te machucaram? Será mesmo que isso aconteceu? Mas, justo com quem?! Que parte do teu corpo foi afetado? E por fim, aonde estão as marcas!? Por favor, nunca me faça essas perguntas. Passar pela fase de revelação é um momento delicado que exige cuidado e observação.

Por que é tão difícil acreditar nas vítimas? Feridas não são somente externas. Existem também feridas emocionais e por mais incrível que pareça, alguém tocou em meu corpo e machucou a minha alma. Minha mente funciona de forma diferente. Minha personalidade nunca mais será a mesma e as marcas não podem ser vistas porque é preciso nutrir a própria alma com amor, compaixão e empatia para ver a dor do próximo.

As sequelas de qualquer violência não podem ser vistas sem empatia e o que mais há em nosso meio é justamente a falta dela. Não consigo tomar banho com sabonete em barra; Não consigo me secar com a mesma toalha duas vezes; Ás vezes quando estou prestes a conquistar algo grande mergulho fundo na auto sabotagem; Parte de mim é sadomasoquista e a dor é minha amiga íntima; Ás vezes tenho vergonha de mostrar meu próprio corpo porque sinto que ele está sujo; Não gosto que toquem em mim e quando tocam ás vezes sinto dor; Dou risada quando estou nervosa; Tenho a sensação de que um homem vai entrar em meu quarto e não consigo chorar na frente de ninguém. Muitas vezes isso é chamado de frescura ou diferencial já que cada ser humano é único. Há muito mais, claro, mas, pra que marcas maiores do que estas? Sei de várias outras vítimas que não se relacionam afetivamente e sexualmente. Há mulheres que nunca tiveram um orgasmo. Tenho um amigo virgem aos trinta e daí? Ou pior, há quem tenha chegado ao limite extremo de seus forças e já tenha desistido de viver.

Quantos suicídios poderíamos ter evitado se não brincássemos com a dor alheia? Existem marcas maiores de violência sexual sim e isso dói muito, mas, dói muito mais o silêncio que ronda o assunto. Quando você se silencia contra a cultura do estupro, você automaticamente está apoiando ela e os agressores.

Quando você diz que o tamanho da minha roupa motiva a prática do estupro, você está apoiando a cultura do estupro. Quando você diz que o bairro de onde eu venho influencia, você sim, apoia e ajuda que o estupro continue acontecendo porque em silêncio, ninguém faz nada.

De que lado você está? Quem é você? Voz ou olhar?